METODOLOGIAS




A democracia participativa nas organizações da economia social e solidária

Carlos Ribeiro
Caixa de Mitos

No âmbito do Programa Capacitar em Amarante , na Guarda e no Fundão cerca de   trezentos colaboradores e directores de organizações da economia social envolveram-se num processo de mudança interna implementando formas directas de democracia participativa . Passar das palavras aos actos e promover a qualidade na base de valores de uma economia mais solidária foram a marca desta experiência que vai ter continuidade no âmbito das redes locais.


A experiência levada a cabo nos últimos dois anos no âmbito Programa Capacitar da Animar, desenvolvida pela Caixa de Mitos com a colaboração de dinamizadores locais, envolveu uma vintena de associações de desenvolvimento local, de centros sociais, de cercis,  de cooperativas e de estruturas locais que ampliaram as experiências anteriores realizadas nos Municípios do Baixo Tâmega (em 2008, com a participação da UTAD) e na Câmara Municipal de Espinho (em 2007, com o IGAP).
Ao todo foram cerca de trezentos trabalhadores e dirigentes associativos que foram desafiados para dinamizarem internamente processos qualificados de participação.
A ideia central do Malmequer da Participação reside na acção colectiva para a resolução de problemas imediatos da organização, sendo o processo marcado por uma sequência de acções que vão da auscultação (diagnóstico participado) à implementação de medidas muito concretas, no mês imediatamente a seguir à Sessão Plenária que responsabiliza o colectivo por seis iniciativas que provocarão necessariamente mudanças no funcionamento da organização

Desde meados dos anos 90 que os temas da gestão da mudança e do planeamento estratégico  participado nas  microempresas e nas organizações da economia social colocaram  a necessidade de aplicação, naqueles contextos organizacionais específicos,  de metodologias peculiares devidamente adaptadas a processos coerentes de desenvolvimento organizacional.
Na gestão do Programa Formação PME da AEP então AIP – Associação Industrial Portuense, na fase experimental realizada entre 1996 e 1999, colocou-se na ocasião a questão nuclear dos métodos e dos processos de intervenção em estruturas organizativas muito condicionadas pela escassez de tempo e recursos e com relações internas fortemente dominadas pela figura do empresário ou gestor do negócio ou então pelo dirigente histórico da instituição.
Na ocasião, ainda na fase pioneira dos programas de consultoria principalmente para as microempresas, assentaram-se as estratégias de  aprendizagem nos princípios andragógicos (que remetem para a experiência anterior como ponto de partida para as novas aprendizagens) e na vertente do desenvolvimento organizacional, na modalidade da formação – acção, ou seja, na promoção do  desenvolvimento de novas competências através de resolução concreta de problemas em torno dos quais se estruturavam novos saberes.
O arsenal metodológico de então tinha por referência central a chamada Metodologia da Árvore de Problemas e complementarmente  as Oficinas de Projectos que fomentavam novas ideias e novas iniciativas tendo em conta a especificidade dos territórios.
A preocupação, na ocasião, a  par de uma adequada actuação na superação das condições tendencialmente adversas para intervenções estruturais e estruturantes, consistia em garantir uma real participação dos colaboradores destas pequenas empresas nas acções e descentrar o processo do empresário sabendo que ele teria necessariamente, por razões de equilíbrio interno, de o liderar. Tratava-se de uma operação sempre muito delicada por se tornar particularmente difícil de encontrar o justo equilibro entre a imprescindível participação democrática dos colaboradores e o domínio esmagador e tutelar do empresário.
Mais recentemente nas organizações da economia social esta questão ganhou relevância com o surgimento de programas próprios associados de forma geral aos temas da qualidade e aos imperativos de uma gestão mais profissional e menos voluntarista.
Foi neste contexto de desafio que muito recentemente no âmbito do Programa Capacitar da Animar foi dinamizado pela Caixa de Mitos  uma metodologia de capacitação interna baseada no Malmequer da Participação.
Esta metodologia baseia-se em alguns princípios e em vários pressupostos para a sua aplicação:

O principal pressuposto consiste na aceitação à partida da regra da participação e envolvimento obrigatório de todos os colaboradores no processo ficando estabelecido que será realizada uma sessão plenária com todos membros da organização independentemente das funções e do vínculo profissional existente.

Isto significa que são excluídos processos elitistas, restritos a determinadas secções, reservados apenas aos trabalhadores, dominados pelas direcções, ou seja, estabelece-se uma base de abrangência total como condição para o sucesso da intervenção.

A metodologia assenta em alguns princípios fundamentais que asseguram coerência e consistência da acção a desenvolver:

-       Igualdade de direitos e deveres, durante todo o processo, de todos os membros da organização independentemente da estrutura hierárquica existente;
-       Regularidade na realização do programa que deve ter uma edição geralmente associada a um período fixo do ano;
-       Rigor na execução e operacionalização do programa cumprindo o prazo máximo de dois meses de duração;
-       Diversidade e rotatividade anual dos membros do Grupo Dinamizador que deve integrar funções e áreas de actuação na organização diferenciadas;
-       Publicitação de todo o processo desde a fase do seu lançamento até ao final, através da afixação obrigatória, em local visível do Malmequer da Participação;
-       Sessão plenária com poderes deliberativos, sabendo-se que as medidas a serem implementadas dependerão exclusivamente da auto-organização dos membros da organização para a sua concretização (sem meios adicionais a condicionar a sua concretização).

O modelo de intervenção baseando-se em alguns princípios e assentando em alguns pressupostos, estrutura-se em torno de dez passos sequenciais:

-        a identificação da Equipa de Dinamização;
-        o debate em torno das 6 interrogações do malmequer
-        a auscultação criativa, interactiva e implicativa de todos os trabalhadores e dirigentes;
-        a publicitação dos pontos críticos identificados e das soluções através da afixação e animação do Malmequer da Participação;
-        a sistematização dos problemas imediatos e das soluções propostas;
-        a realização de uma sessão plenária com a participação de todos/as na qual são debatidos problemas / soluções;
-        a divulgação das seis Fichas de Acção Imediata contendo o programa concreto de actuação para resolver seis problemas identificados como importantes, prioritários  e com a possibilidade de serem resolvidos no prazo máximo de um mês;
-        a execução das medidas;
-        a informação ao colectivo da avaliação realizada por cada medida implementada.
Todo o processo tem por base a pesquisa, o debate, o envolvimento, a construção de soluções em torno das interrogações – chave cuja finalidade é facilitar e operacionalizar um diagnóstico sumário, muito fino e focalizado na situação muito concreta da organização:

AS 6 INTERROGAÇÕES  DO MALMEQUER DA PARTICIPAÇÃO

1.     Pode haver uma melhor interacção entre dirigentes e colaboradores?
2.     Podem ser melhoradas as formas de comunicação formal e informal?
3.     Pode ser fomentado o trabalho em equipa de forma mais concreta?
4.     Podem ser estabelecidas novas dinâmicas de co – responsabilização nas acções de melhorias contínuas?
5.     Pode ser instituído um quadro de auscultação sistemático e permanente das necessidades, desejos e motivações dos utentes a partir de acções desenvolvidas por todos os membros da organização?
6.     Pode ser impulsionado um maior espírito de abertura interna e externa, fomentando o espírito de iniciativa e os contactos coma as Redes de Proximidade?

Na primeira sessão de trabalho que reúne os seis dinamizadores temáticos são debatidos os temas críticos e estabelece-se a base de auscultação aos restantes membros da organização.
Não existem modalidades pré-estabelecidas para realizar esta abordagem com trabalhadores e directores. Cada um realiza a operação da forma que entende e determina como mais ajustada aos seus objectivos e ao seu próprio estilo de intervenção. Alguns estruturarão pequenos questionários, outros terão apenas uma conversa informal, muitos utilizarão o período de pausa – café para conversar informalmente, alguns utilizarão o correio electrónico e as próprias redes sociais, ou seja, a diversidade nas formas de envolver todos os membros da organização também confere uma certa espontaneidade e vivacidade ao processo. A auscultação sobre os problemas é desde logo orientada para a identificação de potenciais soluções e desta forma bloqueiam-se tendências criticistas e negativas e procura-se incentivar o espírito critico mas numa perspectiva construtiva.

Quando se realiza a sessão plenária com todos os colaboradores e membros da direcção (que possam estar presentes) já existem pelo menos, para cada Interrogação – Chave do malmequer, duas questões criticas e as duas potenciais soluções correspondentes. Desta forma a sessão plenária, que tem o tempo limite de uma hora para a sua realização, trata de forma muito concreta e operacional os temas sobre os quais o debate deve incidir e em torno dos quais devem ser aprovadas soluções a serem implementadas. Evita-se um debate geral sobre todas as questões problemáticas que de uma forma geral surgem nas organizações e procura-se através da eficácia dos próprios processos, reforçar a capacidade colectiva de tomar decisões e resolver problemas, fortalecendo a democracia participativa por essa via.

Na sessão plenária cada Dinamizador Temático apresenta os resultados da auscultação realizada junto da organização e coloca à consideração do colectivo as duas propostas a serem debatidas.

Depois da sessão plenária cada Dupla (dinamizador temático e o/a sua cúmplice) organiza a implementação da medida identificada como prioritária (Ficha de Medida Prioritária)  e  inicia a sua concretização imediata, com o acompanhamento dos restantes membros do Grupo Dinamizador (seis dinamizadores temáticos).

Alguns casos mais relevantes e algumas questões criticas na implementação:

CERCI de S. João da Madeira: a auscultação sobre graus de satisfação do cliente colocou a  questão da diversidade de indicadores a serem considerados para se obter uma resultante fiável e aceitável para efeitos de gestão global, atendendo à especificidade dos clientes/utentes em causa.

Na Creche “O Miúdo”, em Amarante: quando existe uma gestão de grande proximidade, com acompanhamento directo da direcção à gestão quotidiana,  o envolvimento de todos os trabalhadores nas tarefas da melhoria da qualidade depende de uma relação equilibrada entre a comunicação formal e informal, regulando as questões mais técnicas e as outras de ordem mais motivacional.

Na Associação Bem- Estar de Gondar: a comunicação formal que era relativamente desprezada em assuntos de importância crucial para a organização passou a ter uma nova abordagem e a ser assumida de forma mais exigente.

No Centro Social e Paroquial de Real: o sentido de uma interacção mais organizada nas equipas de trabalho implicou a implementação de uma medida de formalização de objectivos entre os diversos membros dos grupos de trabalho.

Na ADESCO, associação de desenvolvimento Amarante, Vila Real e Marco de Canavezes: a ligação directa e regular do conjunto dos directores da instituição aos diversos pólos de trabalho favorece um espírito mais colectivo e promove a auto-estima na organização.

No CLAP Amarante: a abertura ao exterior da organização e o seu impacto no território deve ser partilhado no interior das equipas de trabalho e deve ter maior tradução nos suportes de comunicação da organização.

Na Pinus Verde na Barroca: a auscultação de todos os colaboradores e directores através de questionário estruturado tem os seus méritos e favorece o rigor da informação recolhida, mas dificulta uma abordagem mais informal e às tantas mais espontânea sobre as questões criticas que devem ser enfrentadas com urgência.

Na Associação de Avelãs de Ambom: uma sessão plenária equilibrada em participação entre directores e colaboradores cria condições de confiança e de empenhamento produzindo um grande impacto no colectivo e no eatdo de espírito na instituição.

No Lar da Santana da Azinha: algumas dinamizadoras temáticas falaram pela primeira vez numa lógica de “apresentação pública”, ou seja, fora do contexto restrito do respectivo grupo de trabalho. Esta dignificação da voz de quem não tem geralmente voz nos assuntos da organização, modificou o quadro de relações existentes na associação.

Estas experiências de empoderamento e de expressão concreta da democracia participativa nas organizações da economia social carece de aprofundamento e de uma sistematização mais fina dos processos e dos impactos reais das acções levadas a cabo. As redes locais de auto-aprendizagem são uma excelente plataforma para este efeito. Esperemos que elas consigam assumir este desafio para futuro de uma economia social que poderá progressivamente transitar para uma lógica mais estruturante de economia solidária e sustentável.